quarta-feira, 29 de julho de 2015

Coluna Nutrição - Álcool: a dose faz toda a diferença




Álcool: a dose faz toda a diferença

Luiz Fernando Miranda e Karla Silva Ferreira

O consumo de bebidas alcoólicas envolve razões culturais, sociais e econômicas, mas quando o assunto é saúde, o álcool, se ingerido em excesso, pode causar mais dano corporal do que qualquer outra droga, sendo tóxica ao sistema digestório, fígado, pâncreas, cérebro, sistema cardiovascular, células sanguíneas e ao feto (1). Em 2014, a Organização Mundial da Saúde publicou o mais recente relatório mundial sobre consumo alcoólico no mundo, indicando que o consumo médio global é de 6,2 litros de puro álcool per capita/ano, causando pelo menos 3,3 milhões de mortes anuais, principalmente aos homens (7,6% das mortes aos homens contra 4% das mulheres) (2).

As quatro doenças mais atribuídas à ingestão de álcool são o câncer, doenças cardiovasculares, neurológicas e gastrointestinais (2). No Brasil, o câncer já é a segunda maior causa de morte (7), e o álcool é grande fator de risco para o surgimento do câncer de boca, faringe e, sobretudo, de esôfago, que é o terceiro tipo de câncer de maior malignidade (8). Nas células da cavidade oral, enzimas do próprio indivíduo e de bactérias bucais (álcool desidrogenases) convertem o álcool em acetaldeído, substância que possui ação carcinogênica (10, 11). Portanto, quanto pior a higienização bucal em presença de álcool, maior o efeito carcinogênico em longo prazo. O álcool também tem ação direta ao surgimento do câncer pelo fato de matar células superficiais da região oral, faríngea e esofágica, gerando com isso, em longo prazo, maior renovação celular e risco de mutação (12, 13), além de comprometer a capacidade de reparo do DNA às mutações (14).

No Brasil, o consumo de bebidas alcoólicas é mais frequente entre indivíduos com idade entre 18 e 34 anos (22% da população) (15). Em muitas festas universitárias, raves, boates e outras, são comuns notícias de intoxicação alcoólica. Alguns estudos mostram que o ponto de corte para definir consumo abusivo de álcool é de no mínimo 30 g de etanol por dia (4, 5, 6)  Na tabela abaixo são listadas algumas bebidas e a quantidade das mesmas que contém 30 gramas de etanol. A dose de 60 g diária já configura risco de cirrose (15).



Vamos percorrer agora o caminho que o álcool faz no corpo após uso abusivo em uma festa universitária:

Um jovem, o Ricardo, alimenta-se pouco e sai para a festa por volta de 23h. Chegando ao local, ele compra uma bebida contendo 150 ml de vodca (55 g de álcool) e começa a tomar. Em contato com a boca, o álcool começa ser absorvido pela mucosa por difusão simples, e ao ser deglutido, continua sua absorção no esôfago e estômago. Estes três locais absorvem 20% do álcool presente na bebida. Com o estômago contendo pouco alimento, o álcool chega ao intestino com mais rapidez, local onde o restante do álcool ingerido termina de ser absorvido. Minutos depois, ao alcançar a corrente sanguínea, o álcool se espalha pelo corpo.... cérebro, rins, pulmão, fígado etc.

Já são 3 da manhã e, ainda sem se alimentar, Ricardo continua ingerindo álcool e é tomado pelo sono. Isto ocorre porque quando chega ao cérebro, o etanol estimula a liberação de GABA (ácido gama-aminobutírico), que induz ao sono e tem ação ansiolítica, além de provocar aumento de dopamina cerebral, molécula que resulta na sensação de prazer e estimula a busca continuada pelo álcool, ainda que acima da capacidade de metabolização pelo corpo. A  capacidade de um indivíduo sadio em metabolizar o álcool não ultrapassa 180 g de etanol/dia, com velocidade de até 200 mg/Kg/hora (3).

Embora se concentre mais no cérebro, rins e pulmões, é no fígado que a maior parte do etanol ingerido é metabolizado. Nas células deste órgão, o etanol é convertido em acetataldeído (no citoplasma das células) e este, em ácido ácetico (nas mitocôndrias), gerando grande quantidade de NADH+H+ (vide reação em figura 1) (16). As moléculas de NADH+H+ formadas no citoplasma impedem a síntese de glicose.


O fígado é o responsável por normalizar os níveis de glicose no sangue quando o indivíduo não está se alimentando de carboidrato. Na ausência de carboidratos, o fígado forma glicose a partir dos aminoácidos das proteínas. Entretanto, o excesso de NADH+H+ bloqueia a formação de uma substância intermediária entre os aminoácidos das proteínas e a glicose (a transformação do malato em oxaloacetato – vide Figura 2). Além disso, o NADH+H+ também reage com o piruvato produzido pelo metabolismo da glicose pré-existente no corpo e forma ácido láctico. Em condições normais, o ácido láctico é convertido em glicose no fígado. Porém, com excesso de etanol este órgão não consegue metabolizar o ácido láctico em tempo hábil, que se acumula no sangue causando acidose.



Figura 2. Ilustração esquemática pela qual se observa que o excesso de NADH+H+ resulta no impedimento da síntese de glicose por meio do oxaloacetato (gliconeogênese), e formação forçada do piruvato e ácido láctico a partir da glicose, ocasionando depleção de glicose na célula e inibição de sua síntese. Por horas sem nutrição, isto resulta em hipoglicemia.

Já por volta de 5h30 da manhã, Ricardo já se encontra de mau humor devido ao baixo teor de cortisol e glicose no sangue (<50 mg/ 100 mL de sangue/hipoglicemia) (16), a visão fica turva, a sudorese é intensa e o rapaz desmaia. Se não fosse levado ao hospital em pouco tempo, Ricardo poderia regredir para coma alcóolico e/ou ter parada cardiorrespiratória em função da acidose láctica (excesso de lactato no sangue).  O coma ocorre quando a glicose sanguínea cai para 30 mg de glicose/ 100 mL de sangue (17) ou 0,3 g de álcool/ 100 mL de sangue (16). A morte pode ocorrer quando o teor de álcool atinge 0,5 g / 100 mL de sangue (16).

Além da hipoglicemia, Ricardo já está desidratado. O álcool inibe a liberação do hormônio antidiurético, que promove a reabsorção de água pelos rins. Sendo assim, há maior perda de água pela urina e dá a famosa “ressaca”. Se a bebida for associada ao consumo de cafeína encontrada em “energéticos” (ler matéria sobre suplementos), a perda de água é ainda maior. O macete de observar o grau de hidratação pela cor da urina (quanto mais amarela maior chance de desidratação) não é válido quando se ingere diurético (ex. álcool).

A ingestão de bebidas “fracas” também causa desidratação, principalmente quando ingeridas em grande quantidade, como a cerveja. Apesar de ter muita água em relação à quantidade de álcool, a presença do álcool faz com que a perda de líquido seja maior do que a que é ingerida. Neste sentido, aproveitamos para fazer um alerta do perigo de se beber muita cerveja sem alimentos (incluindo água) após um “joguinho” de futebol.

Continuando... Enquanto Ricardo é medicado, seus amigos que não ficaram tão mal e insistem em ir dirigindo alcoolizados para casa, são parados pela blits policial que atesta o consumo alcoólico (18). No teste do bafômetro, é detectado o álcool que é eliminado pelos pulmões. Em torno de 10% do álcool ingerido é eliminado pelos pulmões, rins e pele (16).

O fato de Ricardo ter sido vítima de intoxicação pelo álcool não significa que o rapaz seja alcoolista. O alcoolista é aquele que ingere álcool cronicamente a ponto de alterar seu comportamento social e lhe causar prejuízo financeiro e síndrome de abstinência, tratando-se de uma enfermidade progressiva, que leva em média 5 a 10 anos para se instalar (3). Nestes casos, a ingestão crônica de álcool pode levar à necrose hepática em função das lesões teciduais causadas pelo acúmulo de acetaldeído nas células. A inflamação irreversível do fígado é denominada cirrose hepática.

O álcool também inibe a quebra de gordura no fígado, ao mesmo tempo em que estimula a sua síntese. O ato de ingerir álcool em grandes quantidades e com muita frequência ocasiona acúmulo de gordura hepática (esteatose), o que também reduz a eficiência do órgão. Os alcoolistas também tendem à deficiência nutricional em função da substituição de refeições por álcool e também pelo etanol prejudicar a absorção de vitaminas (principalmente do complexo B) e elevar excreção de minerais (ex. cálcio, zinco, magnésio). Assim, o funcionamento cognitivo, síntese de massa muscular e mineralização óssea podem ficar comprometidos.

O excesso de gordura no fígado, porém, difere do acúmulo de gordura abdominal. Não existe estudo que comprove que a ingestão de álcool por si só seja responsável pelo aumento da circunferência abdominal, a famosa “barriga de chope”. A causa da adiposidade é multifatorial e gerada quando a obtenção de energia por meio dos alimentos é superior à energia gasta pelo corpo diariamente. Neste caso, para determinar o total de energia obtida pelos alimentos, a ingestão de álcool deve ser computada, uma vez que 1 g de etanol gera ao corpo 7 Kcal.  A ingestão de 100 ml de vodca, por exemplo, é equivalente a 322 Kcal.

Beber álcool em doses não abusivas pode promover benefícios à saúde?

Há uma linha tênue que separa os benefícios e malefícios causados pelo consumo de álcool (18). Segundo a American Dietetic Association (19), o consumo moderado reduz o risco de doenças cardiovasculares pela redução do nível de LDL-colesterol no sangue (popularmente conhecido como mau colesterol) e outros fatores ainda não muito bem esclarecidos. A ingestão moderada não deve ultrapassar 15 g ao dia de etanol (equivale, aproximadamente, uma latinha de cerveja ou uma taça com 150 ml de vinho).

Referências

1. World Health Organization. Problemas relacionados com el consumo de alchol, Genebra. Informe técnico. 650. 1980.
2. World Health Organization. Global status report on alcohol and health 2014. Disponível em: http://www.who.int/substance_abuse/publications/global_ alcohol_report/en/. Data de acesso 15/06/2014
3. Reis NT, Rodrigues CSC. Nutrição clínica: Alcoolismo. Ed. Rubio. Rio de Janeiro. 2013. 303p.
4. Moreira LB, Fuchs FD, Moraes RS, Bredemeier M, Cardozo S, Fuchs SC, et al. Alcoholic beverage consumption and associated factors in Porto Alegre, a Southern Brazilian City: a population-based survey. J Studies Alcohol 1996;57:253-9
5. National Institutes of Health. The sixth report of the joint national committee on prevention, detection, evaluation, and treatment of high blood pressure. Washington (DC): NIH; 1997.
6. COSTA, Juvenal S Dias da et al. Consumo abusivo de álcool e fatores associados : um estudo de base populacional . Rev. Saúde Pública. 2004, 38(2):284-291.
7. INCA. Indicadores sociais divulgados pelo IBGE colocam o câncer como segunda maior causa de mortes no Brasil. Disponível em http://www.inca.gov.br/wps/wcm /connect/agencianoticias/site/home/noticias/2010/indicadores_divulgados_ibge_colocam_cancer_como _ segunda maior_causa_+mortes_brasil>. Data de acesso 14/06/2015
8. Hospital de câncer de Barretos. Câncer de esôfago. Disponível em: < http://www.hcancerbarretos.com.br/cancer-de-esofago>. Data de acesso: 14/06/2015.
9. Tilonem J, Homann N, Rautio M, Jousimies-Somer H, Salaspuro M. Role of yeasts in the salivary acetaldehyde production from ethanol among risk groups for ethanolassociated oral cavity cancer. Alcohol Clin Exp Res. 1999;23(8):1409-415.
10. Homann N, Tillonen J, Rintamaki H, Salaspuro M, Lindqvist C. Poor dental status increases acetaldehyde production from ethanol in saliva a possible link to increased oral cancer risk among heavy drinkers. Oral Oncol. 2001;37(2):153-58
11. Homann N, Karkkainen P, Koivisto T, Nosova T, Jokelainen K, Salaspuro M. Effects of acetaldehyde on cell regeneration and differentiation of the upper gastrointestinal tract mucosa. J Natl Cancer Inst. 1997;89(22):1692-697.
12. Maier H, Weidauer H, Zoller J, Seitz HK, Flentje M, Mall G, et al. Effect of chronic alcohol consumption on the morphology of the oral mucosa. Alcohol Clin Exp Res. 1994;18(2):387-97.
13. Mascres C, Joly JG. Histochemical and ultrastructural study of the rat oral mucosa, after chronic administration of alcohol. J Biol Buccale. 1981;9(3):279-95
14. Hsu TC, Furlong C. The role of ethanol in oncogenesis of the upper aerodigestive tract; inhibition of DNA repair. Anticancer Res. 1991;11(6):1995-998
15. Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel 2013. Disponivel em: https://biavati.files.wordpress.com/2014/05/vigitel-2013.pdf. Data de acesso: 13/06/2015
16. Braunwald; et al.  Medicina Interna - 2 Volumes - 18ª edição. Editora Artmed, Rio de Janeiro 2014.
17. http://www.progepe.uff.br/sites/default/files/servicos/documentos/folder_informativo_alcoolismo.pdf
18. Jones A; et al. Habitual alcohol consumption is associated with lower cardiovascular stress responses - a novel explanation for the known cardiovascular benefits of alcohol?. Stress: The International Journal on the Biology of Stress. 16 (4): 369-376, 2013.
19. Ferreira MP, Weens s. Alcohol Consumption by Aging Adults in the United States: Health Benefits and Detriments. American Dietetic Association. 1676-1668.

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